Confesso:
quando a entrevista com Ruth Rocha saiu na Zero Hora, nem li. O título me
pareceu meio óbvio, então não fui atrás: “Ruth Rocha: O politicamente
correto foi muito prejudicial para a literatura infantil”, feita pelo
Alexandre Lucchese.(veja a entrevista AQUI)
Bueno,
isso do politicamente correto ser ruim para a literatura de qualquer gênero e
para qualquer idade é fato desde o tempo em que inventaram o politicamente
correto. A dona Ruth reclamou (desculpem, mas não consigo chamá-la só pelo
primeiro nome), a Silvia Ortoff, a Marina Colassanti, a Ana Maria Machado. Eu
sempre achei uma chatice sem tamanho e sem cabimento, mas não sei se minha
opinião conta, acho que não. Então, quando vi o título, pensei “mais do mesmo,
há quantos anos?” Melhor não pensar no assunto. Segui com a minha vida.
Mas na
semana passada dona Ruth que, diga-se de passagem, foi uma das grandes autoras
da minha infância quando eu nem pensava que havia gente que se dedicava a
escrever para crianças, a dona Ruth ousou repetir a heresia literária do
momento, heresia que ela tinha dito na entrevista para o Alexandre, mas que não
tinha surtido efeito, em uma entrevista para um site de notícias de São Paulo.
A dona Ruth ousou dizer que acha que Harry Potter não é literatura, e que
livros com bruxas e vampiros são um modismo que vai passar. O que, diga-se
ainda, é a opinião dela, à qual ela tem todo o direito, mesmo que a gente ache
que é uma opinião equivocada.
Enfim,
pra quê?! Que Deus nos acuda! Como assim, Harry Potter não é literatura?! Como
assim, bruxas e vampiros são moda e vão passar?! Nada disso, gritaram os fãs.
Logo agora que estamos saindo do anonimato, do limbo nebuloso onde nos atiraram
os professores de literatura e a universidade? ‘Tais brincando, dona Ruth?
Não,
nem brincando, nem nada. Na real, o fandom é tão antiquado em suas ideias
quando a Ruth. E tão desinformado quanto ela.
É que o
público do centro do país pouco conhece (sejamos politicamente corretos, não é
mesmo?) o que a imprensa gaúcha publica. Se sai uma entrevista cabulosa na Zero
Hora, com alguma figura famosa, a gente comenta, mas nós somos os gaúchos, os
brasileiros mal-humorados por excelência (por causa do clima frio e invernal, a
falta de praias maravilhosas, garotas de Ipanema e jangadas nordestinas, bem se
sabe). A gente sempre reclama e na maior parte das vezes sem nenhuma razão de
ser, como foi quando a Globo fez a primeira versão de “O Tempo e o Vento”,
com uma abertura maravilhosa e a trilha sonora ainda mais maravilhosa, “Passarim”,
do Tom Jobim. Os gaúchos reclamaram do primeiro ao último, dizendo que a Globo
podia ter chamado um compositor gaúcho para isso – coisa com a qual eu não
concordo o mais mínimo. Mas é só um exemplo do quão mal-humorados podemos ser
os gaúchos. Insatisfeitos, sempre.
Pois
bem, daí que acontece o mesmo que aconteceu com o cordeiro que viva gritando “É
o lobo!”. No fim, ninguém dá bola.
Agora,
quando sai algo na imprensa do centro do país, aí a coisa fica grande. Porque
aí mexe com os brios do pessoal lá de cima.
Feita a
reclamação tipicamente gaúcha, vamos ao que interessa.
Na
entrevista que Ruth Rocha deu ao IG, ela comentou (novamente) que não considera
Harry Potter literatura. E que bruxas e vampiros são moda e que, como toda
moda, vão passar pela avenida, feito o samba popular da Elis Regina, com a
diferença de que “Vai passar” ficou, e os demais seguirão o seu caminho
para o esquecimento.
A
opinião de dona Ruth, que eu respeitaria se, como eu, ela tivesse lido a série
da Rowling, mesmo sem morrer de amores pelo personagem, pela escritora e pela
forma como ela desperdiça uma grande história, só teve essa repercussão por
três razões. A primeira e mais importante é: apesar da maioria de seus críticos
estarem morrendo de raiva, as histórias de Ruth Rocha fizeram parte das
leituras de infância da maioria desses críticos. Eles estão se sentindo traídos
por uma autora que lhes falava ao coração. As outras razões são mais mundanas.
A opinião dela conta, porque Ruth ganhou prêmios importantes e porque tendo uma
história marcante na única revista que conseguiu se posicionar contra o regime
ditatorial, a revista Recreio, é respeitada pela imprensa. Para quem não sabe,
a Recreio dos anos 70, que guarda com a atual apenas a coincidência do
nome, não sofria nas mãos da censura porque era material infantil e
portanto, como a maioria das pessoas infelizmente continua a pensar,
infantilóide, sem nenhuma relevância. A formação das pessoas, vê-se, não tinha
nenhuma relevância para a ditadura que ignorava joias como “Romeu e Julieta” –
a das borboletas, não a de Shakespeare –, “Marcelo, Marmelo, Martelo” e outras
delicatessens que nos ensinaram a pensar em uma época na qual pensar podia ser
um crime. Se não fosse tudo isso, ninguém estaria dando a mínima.
O que
eu não estou dando a mínima é para a polêmica em torno do que a dona Ruth disse
sobre o Potter, as bruxas e os vampiros.Eu estou indignada, é com o que ela
disse ao Alexandre Lucchese (e que você não encontra na entrevista da IG).
Segue o trecho:
“A senhora destaca bons autores infantojuvenis surgindo no mercado?
Não.
Na literatura para adultos, vejo muita gente boa. Mas a literatura infantil
está muito influenciada por coisas de fora (do país), vampiros,
bruxas, mágicos... Acho isso tudo uma bobagem. Não vejo graça alguma.”
E
fecha aspas. Mesmo.
Doeu.
Doeu muito. Em apenas 34 palavras, a Ruth confirmou aquilo que eu já
suspeitava, que você que gosta de literatura de fantasia brasileira já sabia:
ela não leu. Ela não nos leu. Eu sei que sou uma das que mais reclama sobre a
qualidade (e sobretudo a falta dela) em muitos dos textos de Fantasia
brasileiros. Mas também sei que tem gente muito boa nessa seara. Gente que
merece ser, se não citada, pelo menos lida. Ela poderia ter dito “temos alguns
autores bons”, e fecha aspas, não precisa citar o nome de ninguém. Ela poderia
ter citado algum dos autores da velha guarda. Falar mal de Harry Potter,
reclamar de livros que se inspiram livre, clara e profundamente em temas,
livros e filmes europeus e americanos, é fácil. Nem é preciso dar muitas
voltas. Mas ignorar que há gente tentando fazer algo digno deste lado de
Greenwich e ao sul do Equador, expõe aquilo que se fala e ninguém gosta
de confessar: que os autores brasileiros não estão lendo os autores
brasileiros. Que os leitores brasileiros passam, com muita desconfiança, da
primeira página de um livro de Fantasia brasileiro, quando não o repõe na
estante de onde o tiraram, com uma expressão de consternação (sejamos
politicamente corretos. “Nojo” é uma palavra meio pesada, apesar de curta). E
quando finalmente, optam por ler algum título, esses leitores optam pelo óbvio:
por bruxas e vampiros, porque isso é o que se reconhece por “Fantasia”.
No
Facebook de um amigo, comentei, brincando, que a Ruth Rocha dizia isso porque
ainda não tinha “me” lido. E que precisava me ler.
Agora
é sério: ela ainda não me leu. E precisa ler. A mim, e à uma lista de autores
capazes, divertidos e talentosos.
E
audaciosos. Podemos não acreditar em assombração. Mas continuamos a acreditar
na Literatura de Fantasia, sobretudo quando ela tem a cara do Brasil e da
América.
Pena
que tem tanta gente daqui que escolheu ignorar a gente. Porque quem vem de
fora, acreditem, está louco para nos conhecer.
Acho que você tem razão, mas, como eu escrevo (também) sobre bruxas e castelos e coisas que vêm de fora, talvez essa parte me incomode mais. Temos uma herança europeia muito forte no Brasil... não acho que o fato de escrever sobre bruxos, magos e castelos seja desabonador por si só.Autores americanos, tanto os do norte quanto os do sul, têm direito a gostar dessas coisas e, ainda assim, fazer boa literatura. Mas Ruth Rocha, que, sim, é uma pessoa que respeito pela trajetória, colocou tudo isso no mesmo saco. E fiquei triste. Enfim.
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