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Ao sul mais ao Sul de todas as histórias já contadas

Os Sóis da América é uma saga em quatro livros que conta a história de Pelume, um menino que vive ao sul de todos os povos. Buscando uma história mítica de grande importância para a sua gente, Pelume embarca em uma jornada do extremo Sul ao extremo Norte do continente, numa aventura cheia de emoção e magia que vai mexer com a sua maneira de ver o continente americano.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Um pedaço de capítulo para vocês!

Para você que está acompanhando o blogue Os sóis da América, mas ainda está na dúvida de se compra o livro ou não (afinal, é mais uma série...), fica aqui um pedacinho da história para degustação. Se ficar curioso e interessado, e resolver adquirir o livro, vá até a Livraria da Porteira da Fantasia (clique aqui) e deslize até o final da lista. Você pode adquirir o livro através do sistema Pagseguro e ainda por cima, seu volume chega autografado!

   “Súbito, ele gelou de susto.

    Era o invunche!

   A criatura saltou para Pelume com um grunhido, as garras esticadas na direção de seu pescoço. Felizmente a terceira perna do arauto tropeçou no barco e o monstro caiu longe do menino, que agarrou o Nalladigua, pronto a usá-lo para se defender. No último momento, entretanto, titubeou. O invunche era medonho, mas bastou olhar seus olhos para Pelume compreender que ele um dia fora humano. Em seu coração acendeu-se uma chama de piedade. Foi Misqui quem saltou sobre a criatura e a jogou na água. De qualquer forma, era tarde: tinham sido descobertos!

   De algum lugar trás deles, ouviram aquele assobio maldito e medonho que tanto medo lhes havia causado no Pampa aberto. Os itinga relincharam horrorizados e, por um instante, cada um quis correr em uma direção. O grupo se deteve. O machí surgiu, montando aquela coisa que comandava, velha, horrenda, viscosa. O piguchén avançou. Tinha umas asas disformes como que de morcego, que ajudavam a prolongar seu salto. Com um golpe da garra afiada, o monstro destroçou os arreios de um dos itinga que puxava o barco da frente e cortou o pescoço do nobre animal, que caiu com um relincho de agonia.

   Saídos do susto, Abapera e Nhanderiquei se moveram em direção ao piguchén. A flecha do índio zuniu certeira, dourada, e cravou-se perto do olho saltado da criatura, que ganiu, surpresa. O machí atacou. O feiticeiro movia-se de maneira extravagante e sussurrava, sibilando sem parar. Quando menos esperava, Pelume sentiu uma ardência no braço esquerdo. Olhou, surpreso: um vergão desenhava-se ali, como se tivesse levado uma chicotada. Esse era um dos piores poderes do machí: ferir seu inimigo à distância!

   O cavalo da canoa da frente, que agora estava sozinho, tentava escapar rumo ao centro do rio, mas as águas agitadas pelo poder do feiticeiro ameaçavam tragá-lo. Ele sobreviveria à súbita fúria das águas, com certeza, mas Nimbó não. Por isso, Nhanderiquei saltou sobre o animal, arrebentou as rédeas de couro com as mãos e empunhou seu arco e flecha.

   – Pule para o barco de Abapera! – ordenou o primogênito com voz possante para o guarani. Quando o barco, arrastado pela corrente, passou perto de Pelume e Misqui, o garoto saltou para ele sem hesitar. A canoa, cheia de gente, oscilou perigosamente, ameaçou adernar, depois endireitou-se, mas estava tão carregada que as ondas entravam facilmente pela proa. Abapera fez a única coisa que lhe restava fazer. Atirou as rédeas dos itinga nas mãos de Nimbó, passou a mão na cabeça de Pelume e saltou para as macegas da margem.

   – Vão embora! Para o norte! Agora! – ordenou, impedindo uma investida mais ousada do piguchén e do machí, cuja face, horrenda, desfigurada pelo corte do anzol de Pelume, rosnava encantamentos. O golpe da lança do gaúcho resvalou no pelo curto que cobria o bicho monstruoso e a criatura voltou-se para ele arreganhando os dentes. Com uma bocada estraçalhou a lança e Abapera ficou apenas com um facão para defender-se. Nhanderiquei tentou acertar o machí pelo outro lado, mas neste momento uma sombra saltou sobre ele. Era o invunche!

   – Seu aprendiz de feiticeiro! Passe-me o corno dourado! – vociferou o machí, saltando do dorso do piguchén e correndo na direção do barco de Pelume.

  – Não tenho nada que você possa querer! – gritou o menino. No salto seguinte, o machí estava dentro do barco. Um gesto seu e a água cresceu feito enchente.

   – Não voltarei a pedir! – berrou o bruxo e um arranhão ainda mais profundo cortou o peito do menino. Pelume cruzou o Nalladigua diante de si, sem pensar, e a madeira frágil de alguma maneira funcionou como escudo. O arranhão deteve-se pela metade e o homem grunhiu. Neste momento, uma onda maior bateu contra o barco e arremessou Pelume aos pés de Nimbó, que deu rédea aos cavalos. O tranco do barco fez com que o machí se desequilibrasse e caísse no rio revolto. O feiticeiro ainda conseguiu agarrar a ponta do Nalladigua, na queda, e por pouco não o levou consigo, mas Pelume o puxou do outro lado, com força. Então as águas embranqueceram de súbito e o corpo do machí foi jogado contra o piguchén, que continuava enfrentando Abapera junto ao rio. Nimbó não esperou para ver o que ia acontecer: gritou para os itinga e ganhou a corrente do rio rumo ao norte, mergulhando no anoitecer.

   Tinham conseguido avançar até uma curva e a noite crescente ocultava-lhes o local do embate. Inesperadamente o céu tingiu-se como o alvorecer, e por um instante pareceu que o Sol se acendera em pleno campo. Ouviram uma grande explosão e um grito

   – O que foi isso? O que aconteceu? – perguntou Misqui, temerosa.

   – Vamos voltar! Pode ser Nhanderiquei! Pode estar pedindo ajuda! – gritou Pelume.

   Nimbó freou os itinga com força. Olhou para trás a tempo de ver a luz dourada se apagar.

   – Ayú! Era Nhanderiquei! – gemeu o guarani.

   Quis voltar. Chegou a dar a volta. Mas se deteve. Um assobio frio e perverso varreu o campo seguido de um silêncio de morte.”

O Nalladigua - Os Sóis da América - vol.1 - Simone Saueressig 


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